por Basílio Machado
3h40 da madrugada. Nesse horário a patroa já estava arrumada para levar a sogrona e a tia para se vacinarem contra a Covid-19. Faríamos aquele esquema de drive-thru. Menos moderna, a tia perguntou se esse bicho mordia. Como ontem já havia explicado que “delivery” é a mesma coisa que entrega em domicílio, e ela ainda acha que se trata de uma nave espacial americana, resolvi encerrar o assunto.
Com as velhotas no carro, bem emperiquitadas, partimos para o Parque de Exposição do Aeroporto, que, na verdade, nem teco-teco tem. Já beirava às 4h00 quando chegamos. Exatamente 101 automóveis foram mais precavidos que nós. Paciência. Em minutos outros 500 já estavam atrás do nosso Ford Ka de bico quebrado.
Lá pelas 7h00, mais de mil chegaram, muito mais. Me fez lembrar dum conto do magnífico Júlio Cortázar, quando narrou um grande engarrafamento que tomou as entradas de Paris. No início, solidariedade, compaixão, o tempo foi passando e veio o caos. O final é de chorar e reverenciar, leiam “A Autoestrada Sul” do autor.
Assim que encostamos o Ka, a cada minuto passava por nós um senhor ou uma senhorinha, algumas até vestindo chapéu, bem agasalhadas para se prevenir do sereno. Desciam do carro para esticar as pernas e se informar sobre a quantidade de vacinas, a hora certinha de começar, essas coisas. Pelo menos é o que diziam. Cá com meus botões, percebi que queriam mesmo é mexericar, assuntar com os outros carros. Estavam contentes, isso é verdade, seus semblantes expressavam a satisfação de enfim poderem tocar o Santo Graal.
Assim foi até às 8h00. Meia hora antes do previsto, começou a vacinação. Os servidores previram que a demanda estava bem maior que a oferta. Carros e mais carros encostando e empurrando pela contramão. Começaram as confusões. Muitos queriam furar a fila, colocar seus SUVs à frente dos fuscas. A patroa zangou-se e ligou para polícia, um Jeep insistia em não respeitar o nosso bico quebrado.
A polícia chegou e tentou organizar, mas o bagulho estava doido e a turma continuava chegando. Já eram mais de cinco mil. A fila ia do Vila Rica ao BNH e rodopiava toda a Exposição. Os servidores eram vápidos no gatilho, quer dizer, na seringa. E muito educados, dadas as circunstâncias. Afinal, era uma luta pelo elixir da sobrevivência e pela libertação.
As velhotas do nosso Ka foram espetadas às 9h00. Estão felizes da vida. A fura-fila do Jeep teve que voltar pra casa, vai se vacinar na semana que vem, no postinho do bairro onde mora, como faz a plebe rude. Às 11h00, as coisas começaram a normalizar. Tal qual no conto do argentino boa praça, ao final o nó foi desfeito. Tudo muito surreal. Sinal dos tempos bicudos que vivemos. Menos para o meu Kazinho, que continua sem bico e na volta ainda furou o cano de descarga. Puta merda!