Em Cachoeiro de Itapemirim, a antiga Fazenda Monte Líbano, com uma história marcada pela escravidão, chegando a possuir três senzalas na segunda metade do Séc. IXX, se transformou numa porta de esperança no sistema prisional capixaba.
Encravada às margens do rio Itapemirim, à montante do centro da cidade, parte da antiga fazenda abriga uma instituição que vem fazendo a diferença no processo de ressocialização de detentos no Espírito Santo: a Apac Feminina. O método empregado na instituição evita que 90% deles voltem à criminalidade depois de cumprida a pena, segundo a Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC).
A despeito da palavra “Feminina” no nome, a instituição é responsável pelo Centro de Reintegração Social Masculino (CRS), que responde pela guarda de 54 homens advindos de presídio administrado pelo Governo do Estado. São 40 cumprindo pena em regime fechado e 14 no semiaberto.
Lá os recuperandos são submetidos a uma metodologia de ressocialização baseada no trabalho, espiritualidade, responsabilidade e solidariedade.
A reportagem do PORTAL DE NOTÍCIAS 24 HORAS visitou a instituição para ver in loco o dia a dia na Apac Feminina, que vem acumulando prêmios de responsabilidade socioambiental.
Em 2022, um de seus projetos foi vencedor do Prêmio Biguá, da Rede Gazeta. Intitulado “Piscicultura Sustentável”. O curso é fruto de uma parceria com o Ifes/Alegre, aplicado pelo professor Thiago Bernardo, que promove aulas teóricas e práticas de criação de peixes junto aos recuperandos do regime semiaberto.
Segundo o diretor da Apac Feminina, Ademir Torres, em 2023 a produção das espécies Tilápia e Tambacu alcançou 4 toneladas. “Para este ano, projetamos dobrar esse quantitativo”, previu.
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O próximo passo será a instalação de um abatedouro licenciado pelos órgãos ambientais e sanitários. “Isso que vai nos permitir filetar e vender os peixes com maior valor agregado”, completou o diretor.
Atualmente, uma parte da produção de peixes in natura é destinada à alimentação dos recuperandos. Outra parte é comercializada diretamente com o consumidor e com a indústria de abate. O dinheiro arrecadado ajuda a compor o fundo destinado à manutenção do projeto.
A Apac Feminina também recebeu do Sindiferro o prêmio “Farol do Bem”. Desta vez, pelo trabalho de horticultura e fruticultura realizado pelos internos.
Nessa ação, a produção de frutas, como manga, abacate, limão e acerola, além de verduras e legumes variados, é doada ao banco de alimentos da Prefeitura de Cachoeiro de Itapemirim, Casa Acolhedora de Atílio Vivacqua e a instituições de cunho social, como asilos e entidades de apoio a moradores de rua.
Regime fechado
Apesar de permanecerem numa área restrita e bem guardada, os 40 recuperandos do regime fechado da Apac possuem uma rotina completamente diferente daquela à qual eram submetidos no sistema prisional tradicional. Eles não passam os dias em celas abarrotadas, como é comum nas penitenciárias.
As atividades são intensas. Desde o alvorecer, os recuperandos são responsáveis por todas as tarefas inerentes à sua própria sobrevivência, como a feitura da alimentação e a higiene de todo o espaço que ocupam, inclusive dos banheiros e das celas, que são impecavelmente limpos e bem arrumados.
Durante o dia, também são realizadas sessões de laborterapia e atividades artísticas, religiosas (ecumênicas), escolares (Ceeja), curso técnico e faculdade. Esta última é premissa básica para que eles permaneçam na Apac Feminina. “Todos têm que estudar, aqui não pode ter tempo ocioso”, disse Caio Tadeu Any Jordão, gerente da instituição.
Ex-recuperandos são colaboradores
Um dos requisitos fundamentais do método da Apac é a participação paritária dos recuperandos na gestão do CRS. São eles que fazem a vigilância, participam da administração e boa parte do serviço de manutenção, como pintura, capina e pequenos reparos.
As camas dos dormitórios do semiaberto, por exemplo, foram construídas pelos internos. Da mesma forma, estão levantando uma pequena capela na parte alta do terreno para suas orações diárias.
Esta metodologia faz com que ex-recuperandos que passaram pela instituição sejam recrutados para trabalhar nela. É o caso de Raphael Coelho, que ganhou o alvará de liberdade e foi para casa. Meses depois, participou e foi aprovado em um processo seletivo para supervisor de oficinas da Apac, onde pretende ficar ainda por muito tempo.
“Estou de volta como colaborador, devidamente remunerado, carteira assinada, mas em outro nível, agora ajudando a manter este trabalho que mudou a minha vida”, refletiu Raphael.
Estrutura precisa ser melhorada
Mas nem tudo são flores na instituição. A reforma no antigo casarão da fazenda, prometida desde 2019 pelo Estado, poderia ampliar a capacidade da Apac Feminina para receber até 120 detentos. O local foi depredado e saqueado durante o período em que o presídio ficou fechado, entre 2015 e 2017.
Ademir conta que as obras foram iniciadas, mas não houve continuidade por parte do governo, que realiza os repasses regulares para o funcionamento da instituição. Mesmo assim, ele espera que a situação se resolva e já faz planos para construir o CRS Feminino para também receber mulheres.
“Nos três alqueires da propriedade, temos uma área de 28 mil metros quadrados reservada para a construção das instalações para recebê-las. Se Deus quiser, até o final de 2024 teremos esta definição, mas estamos prospectando também outros locais”, pontuou.
Nesta área, localizada na parte alta da instituição, a intensão do diretor é também instalar uma fábrica de blocos de cimento e um viveiro para produção de mudas nativas, ornamentais e frutíferas. Ademir conta que seria uma forma de diversificar as atividades laborais dos internos e obter recursos para a instituição.
Na mesma linha, está adiantado o projeto de uma panificadora e uma cozinha industrial, que ocupará um antigo imóvel da fazenda, antes reservado para uma fábrica de sabão por outra gestão, que não vingou. A reforma, com mão-de-obra dos próprios recuperandos, e os equipamentos serão adquiridos com recursos de um fundo do Tribunal de Justiça (TJ-ES). O convênio para que isso ocorra está já em andamento.
“Com isso, vamos poder fornecer pão e marmitex para asilos e outras instituições beneficentes, mas queremos priorizar as pessoas em situação de rua. Assim, a mesma mão que cometeu o delito vai entregar o alimento a quem necessita”, completou o diretor.
Precursor
O método Apac foi desenvolvido na década de 1970 pelo advogado e jornalista Mário Ottoboni, em São José dos Campos (SP). No modelo de prisão da Apac, não há policiais nem uniformes para os recuperandos, que também possuem as chaves dos portões.
Encampado pela Pastoral Penitenciária, a metodologia foi sendo disseminada pelo Brasil, alcançando oito estados da federação, com mais de 100 unidades. Hoje, diversos países europeus e os Estados Unidos adotam a filosofia de trabalho da APAC (Amar o Próximo Amarás a Cristo).
Curiosidade – Poder e Religião
A Fazenda Monte Líbano tem uma história que mistura escravidão, poder e religião em Cachoeiro de Itapemirim e mesmo no Espírito Santo. Ali, foi o quintal da infância de três ex-governadores do estado. Os dois primeiros foram os irmãos Jerônimo Monteiro (1908 a 1912) e Bernardino Monteiro (1916 a 1920).
O terceiro, Carlos Fernando Monteiro Lindenberg, governou o estado por dois mandatos, de 1947 a 1950 e de 1959 a 1962. Fundador do Jornal A Gazeta, era neto do patriarca da família, capitão Francisco de Souza Monteiro, que migrou de Minas Gerais para Cachoeiro em 1853.
Fernando Monteiro, irmão de Jerônimo e Bernardino foi bispo diocesano espírito-santense de 1902 a 1916.
Matéria atualizada às 18h30 de 01/03/2024