Por Guilherme Nascimento
Enquanto o caminhão de lixo passa rapidamente pela rua, dois trabalhadores descem correndo, viram manualmente os latões azuis e jogam os resíduos para dentro. Às vezes cai um pouco no chão. Às vezes, nem tudo é levado — principalmente se for algo que “foge do padrão”: restos de móveis, pedaços grandes de madeira ou qualquer objeto que não caiba no latão.
A cena parece banal. Mas basta olhar de perto para ver que ela é muito mais do que um serviço mal feito: ela é um retrato do tipo de país que estamos alimentando. Um país que trata a população como descartável, o trabalhador como invisível, o espaço público como irrelevante. Um país onde se faz o mínimo e se exige aplauso. Onde a precariedade se esconde atrás de placas de “obra inaugurada”.
E o povo? O povo segue pagando caro — com dinheiro, com paciência e com dignidade.
Quando terceirizar vira se ausentar
Não sou radical. Reconheço que, em alguns casos, a terceirização de serviços pode ser útil. Mas terceirizar não pode ser sinônimo de abandono da responsabilidade pública. Quando a prefeitura contrata uma empresa para cuidar da coleta de lixo, da água, da limpeza urbana, do saneamento, ela continua sendo responsável por garantir que esse serviço funcione com qualidade.
No entanto, o que temos visto é o contrário: contratos firmados com pressa, empresas mal fiscalizadas, trabalhadores mal pagos, equipamentos sucateados. A população, que paga impostos altíssimos, é quem sofre com a negligência, com o descuido, com o improviso.
Obra não é presente. É obrigação.
Aqui na cidade, reformaram três lagoas. Onde havia brejo, cavaram, retiraram vegetação, destruíram o que tinha de vida ali. As lagoas ficaram com cara de “praça pronta pra foto”. Mas não pensaram na sustentabilidade, nem na arborização, nem no acesso à água potável, nem em energia solar, nem no controle de pragas. Hoje, há mau cheiro, peixes mortos, luzes queimadas, corrimãos quebrados. A obra envelheceu antes mesmo de completar seu primeiro aniversário.
E o mais revoltante: políticos comemoraram como se tivessem feito uma revolução. E parte da sociedade aplaude. Se contenta com pouco. Aceita que o mínimo seja tratado como grandioso.
Mas fazer uma obra sem qualidade, sem cuidado, sem visão de futuro, não é progresso. É desperdício de dinheiro público. É maquiagem. É projeto de poder sem compromisso com o povo.
O contraste com outros países: não é sobre admirar, é sobre aprender
Usei o exemplo dos Estados Unidos. Não porque ache que são modelo de nada. Não passo pano para a desigualdade social extrema, para o histórico de exploração e racismo que estruturam aquele país. Mas quando se trata de padronização, profissionalismo e eficiência dos serviços públicos, precisamos reconhecer que lá existem práticas que funcionam — e que poderiam muito bem funcionar aqui.
Caminhões de lixo automatizados, lixeiras padronizadas, protocolos claros, trabalhadores bem remunerados, estrutura de limpeza planejada. Enquanto isso, aqui, seguimos virando latão no braço, empurrando lixo no improviso, aceitando a precariedade como regra.
Por que o Brasil é tão caro para quem vive nele?
Vi um vídeo: três mulheres comparando o preço do mesmo sapato em Portugal, nos EUA e no Brasil. Lá fora, o preço era mais baixo. Aqui, o mesmo item custava muito mais — e com salário muito menor.
Não é sobre conversão de moeda. É sobre poder de compra. No Brasil, o salário mínimo não acompanha o custo real da vida. Mesmo com os reajustes recentes acima da inflação, seguimos ganhando mal e pagando caro. A carne que exportamos custa menos no mercado estrangeiro do que no açougue da periferia brasileira. O sapato que fabricamos aqui é mais barato lá fora do que no nosso shopping.
Quem vive no Brasil paga caro para viver mal. Isso não é coincidência. É estrutura.
A criminalização da pobreza cotidiana
Outro dia colocaram entulho aqui na rua. Alguns pedaços de madeira, restos de móveis. O caminhão do lixo passou — e não levou. Ficou ali por semanas. Depois uma equipe apareceu, varreu, juntou. Mas o entulho continuou ali, no meio-fio, quase na rua. Ninguém veio buscar.
E aí a gente ouve que “é proibido jogar entulho na rua”. Mas a pergunta que grita é: se é proibido, então qual é a opção? A pessoa é pobre, não tem onde colocar, não tem carro, não tem dinheiro para alugar caçamba. Vai jogar aonde? Existe um número da prefeitura? Existe um serviço gratuito de retirada?
Não dá pra proibir sem oferecer alternativa. O que se faz, na prática, é criminalizar a sobrevivência. É tratar o pobre como problema, enquanto o poder público se esconde atrás de placas de advertência.
Serviço público não é favor. É direito.
Serviço público de qualidade não é luxo. É obrigação constitucional. Seja feito diretamente pela prefeitura, seja por meio de empresas terceirizadas, ele precisa funcionar. Precisa servir. Precisa ser pensado com cuidado, escuta, fiscalização e visão de futuro.
Enquanto aceitarmos o improviso como política pública, vamos continuar vivendo num país que cobra caro e entrega pouco.
Conclusão: o Brasil que queremos começa pela rua onde moramos
É no lixo que não é recolhido, no entulho que não é levado, no latão que nunca é lavado, na lagoa mal feita que já se quebrou, que enxergamos o Brasil real. E é aí que a mudança tem que começar: na consciência crítica, na cobrança organizada, no desejo de não aceitar mais o mínimo.
Não é só sobre lixo. É sobre o tipo de país que queremos construir.
E eu, sinceramente, quero viver num país onde o serviço público seja motivo de orgulho. Onde a dignidade comece na calçada. Onde o trabalhador seja valorizado. Onde a pobreza não seja tratada como crime. E onde os políticos saibam que cumprir o básico não os transforma em heróis.
Transforma apenas em alguém que, enfim, está fazendo o que deveria ser feito.









