Por Guilherme Nascimento
Talvez a cidade seja, antes de tudo, um organismo vivo que atravessa o nosso corpo. Não apenas ruas, pontes, praças e endereços — mas uma tessitura de cheiros, sons, texturas e lembranças que se entranham na pele e acendem lugares dentro de nós. Em Vila Velha, por exemplo, o nariz percebe antes do GPS: o perfume de chocolate que se espalha pelo ar denuncia os bairros do entorno e cria um farol olfativo que guia, mesmo de olhos fechados. Em Cariacica, é o torra-torra do café que nos chama para a Grande Vitória, como se cada grão tostado anunciasse que chegamos. Em casa, na costa sul, há um momento em que o sal beija o vento e a marisia abre a porta da memória: o Porto da Barra, o cheiro de pescado, as vozes que caminham com a maré.
A paisagem — essa palavra que muitas vezes tratamos como quadro — é, na prática, uma conversa entre o que vemos e o que sentimos. As montanhas do Espírito Santo não são apenas relevos; são bússolas afetivas. Quando o Monte Aghá surge no horizonte, ele não apenas orienta a direção: devolve um pertencimento. E, vigentes no nosso cotidiano sul-capixaba, as montanhas do Frade e a Freira — monumento natural talhado por geologia e mito — guardam a estrada e a memória, como sentinelas de pedra que nos lembram de onde viemos e para onde voltamos. O Pico do Itabira, altivo, opera como um botão secreto que aciona a infância em Cachoeiro; de repente, não é a montanha que se move, é o tempo que volta para brincar com a gente. E a Pedra do Lagarto — escultura de geologia e imaginação — lembra que nas montanhas capixabas as rochas têm rosto, as encostas têm voz e a floresta de pedra também floresce.
Mas a cidade não é só o que o olho alcança. Há uma cartografia tátil sob os pneus: atravessar uma divisa municipal é, às vezes, uma mudança sutil na textura do asfalto, um costurado diferente, uma vibração no volante que diz “agora você está em outro lugar”. A pele, o ouvido, o paladar — tudo participa da leitura urbana. Um caldo de cana numa feira, o chiado de um ônibus freando na avenida, o pregão do vendedor de picolé, a brisa que vira vento e faz a bandeira bater. O corpo é ourives de detalhes; a cidade, um mosaico de microacontecimentos.
Se Italo Calvino nos presenteou com As cidades invisíveis, talvez a nossa tarefa seja revelar as cidades sensíveis: aquelas que não cabem no mapa de papel, mas se gravam no mapa do corpo. Jane Jacobs lembrava que as calçadas são culturas; é ali que as vidas se cruzam, onde o “olhar da rua” garante cuidado e sociabilidade. Milton Santos nos ensinou que o espaço é também uma máquina social — operador de desigualdade e de encontro. Yi-Fu Tuan nomeou de topofilia essa ligação afetiva com o lugar: o amor por um pedaço de mundo que nos firma os pés e nos ergue o peito. Michel de Certeau, andando pelos quarteirões, dizia que cada passo fabrica frases urbanas; caminhar é escrever a cidade com os pés. E, quando a cidade cansa, Gaston Bachelard cochicha: há sempre um canto, uma concha, uma casa dentro da casa para reabitar o ser.
No Espírito Santo, a geografia é professora: mar e montanha conspiram para que o cotidiano seja sempre levemente épico. O urbano se mistura ao rural, a roça abraça o porto, o vento vira personagem, a maré interfere nos horários, o relevo desenha vizinhanças. É nessa fricção que a cidade revela sua potência: não como vitrine higienizada, mas como tecido vivo, onde diferenças se encontram — e se estranham, e se aprendem. As ruas guardam histórias: o boteco que virou referência de música, a praça que foi palco de roda de conversa, o campinho que ensina mais democracia do que muitos gabinetes. João do Rio falava da alma encantadora das ruas; por aqui, as ruas encantam e, às vezes, se revoltam. É bom que seja assim: cidades demasiado silenciosas tendem a adormecer a cidadania.
Sentir a cidade é também reconhecer seus segredos de classe, cor e gênero. Quem pode ocupar o centro? Quem é parado nas esquinas? Quem entrega, quem é servido, quem é visto, quem é invisível? A sensorialidade urbana não é neutra: há cheiros que incomodam alguns e acolhem outros; há sons que viram “ruído” quando vêm da periferia e “evento” quando passam pelo filtro do centro. O mesmo grafite é arte num bairro e “pichação” noutro. O mesmo funk é cultura comunitária em uma quadra e “barulho” na reunião do condomínio. Sentir é também politizar o sentir: perguntar pelo direito à cidade, à moradia, ao transporte, à cultura, à sombra de uma árvore numa tarde de verão.
O futuro urbano não se constrói apenas com concreto, mas com amarração de laços. Entre montanhas, baías e ventos, o que nos mantém no caminho é o que construímos uns com os outros: vizinhanças solidárias, festas de rua, bibliotecas vivas, saraus que improvisam pontes, memórias que se tornam políticas públicas. Marc Augé falou de não-lugares — aeroportos, shoppings, vias expressas —, mas nós podemos reencantar os “não-lugares” com microatos: uma feira no estacionamento, um slam sob o viaduto, um coral que ocupa uma estação, um mural que conta a história que o manual escolar não contou. Onde há gente, há lugar em construção.
E como afinar esse sentir? Com pequenos rituais urbanos: caminhar sem pressa e sem fone uma vez por semana; mapear cheiros do bairro como quem coleciona timbres; aprender três árvores pelo nome; observar o desenho das sombras à tarde; reconhecer as texturas do chão (paralelepípedo, asfalto, cimento); perguntar ao feirante uma receita e ao motorista um caminho alternativo; sentar no banco de praça e anotar fragmentos de conversas que não têm dono. São exercícios simples que devolvem autoria ao morador — e autoria é a antessala do pertencimento.
Sentir a cidade, porém, não é apenas descrevê-la: é também desejá-la melhor. O olfato que nos guia ao chocolate precisa conviver com o ar limpo; a música que vibra na laje precisa de política de redução de danos e convivência; o asfalto que muda de textura não pode mudar de cuidado. Planejamento não é antônimo de afeto — ele é o seu prolongamento público. Urbanismo com alma é aquele que desenha ciclovias para as crianças, ilumina o trajeto das mulheres, cultiva sombra para os idosos, protege o comerciante local, garante calçada contínua para pessoas com deficiência, preserva o que é histórico sem museificar o que é vivo.
No fim, a cidade que procuramos está, muitas vezes, procurando a gente. Ela nos reconhece quando a reconhecemos. Ela se oferece quando nos oferecemos. Ela se torna nossa quando nos tornamos dela. Por isso, viver o território é mais que morar: é traduzir o mundo para o nosso quarteirão e traduzir o nosso quarteirão para o mundo. É fazer da esquina uma sala de aula, da escola um terreiro de cultura, do festival uma política de continuidade. É transformar cada encontro num investimento afetivo — e cada afeto em ação coletiva.
Eu volto então ao começo, ao corpo que lê o vento: de olhos fechados, sei quando chego. Porque sentir a cidade é escrever com o nariz, com a pele, com o ouvido, com a língua, com o coração. É caminhar atento, celebrar o que pulsa, disputar o que é direito, reparar o que foi ferido, partilhar o que é belo. É fazer amigos, rever histórias, abrir caminhos. É viver — e convidar a cidade a viver junto.
Viva o seu mundo. Viva a sua rua. Viva a sua cidade.









