*por Marco Aurélio Borges
Cheguei até esse informante por meio de um amigo em comum. Depois de uma rápida conversa por telefone, fui até o Shopping Moxuará para encontrá-lo. Me pareceu uma pessoa absolutamente normal. Se definia como alguém que havia reformulado sua vida a partir de convicções religiosas. Talvez por isso não tenha demonstrado dificuldades em falar de seu passado como ex-policial militar do Espírito Santo. Alguns relatos eu jamais poderia publicar, já que não teria como provar ou apresentar evidências. Vez em quando sai na imprensa uma investigação que confirma alguma dessas coisas impublicáveis que me contou.
Em certa altura me disse que as quase trinta acusações de assassinato que acumulava se tratavam apenas daquelas que foram “pegas”. Então perguntei o que o levou a ser “pego” nessas quase trinta. A resposta veio bem objetiva: “só pega quando o defunto chora”.
O relato do meu informante se referia à época que o Espírito Santo amargava o segundo lugar no ranking nacional de homicídios, uma realidade que felizmente, hoje, é muito diferente. Apesar de tantos avanços recentes na questão dos homicídios, a devida punição dos assassinos ainda é um desafio. Cadeias cheias de pequenos traficantes enquanto os indicadores de esclarecimento e condenação por crimes violentos, homicídios, seguem muito abaixo dos padrões internacionais. Volta e meia um defunto chora e as coisas se complicam para os assassinos.
O caso da médica Milena Gottardi é sintomático dessa questão. A pediatra é uma dessas vítimas que choraram (cá entre nós o termo ‘defunto’ é bem desconfortável). Toda a comoção em torno do caso levou a uma investigação que, vejam só, descobriu um esquema de venda de sentenças. Meu informante bem que me disse.
Décadas atrás foi o corpo de uma jovem vítima que chorou. Não porque era uma respeitada médica capixaba, de classe média alta, mas porque seu pequeno corpo cruelmente torturado foi encontrado por acidente, abandonado em local esmo. Era praticamente impossível ignorar a jovem vítima naquelas circunstâncias e então se deu a investigação e a mobilização. Houve esforços, nem todos na mesma direção. No fim das contas, ninguém cumpriu pena pelas barbaridades cometidas à Araceli Crespo.
Em alguns casos o choro da vítima não é suficiente para levar os assassinos à condenação. No caso da médica, creio que ao menos o suspeito de ser o mandante sucumbirá ao forte choro dessa vítima, uma mulher branca, de classe média, profissão com alto grau de reconhecimento social, moradora de área nobre.
Muitas mulheres vítimas de violência não choram tão alto quanto a pediatra. São mulheres pretas; mulheres da periferia; trabalhadoras em profissões sem reconhecimento social; pobres. Não serão colocadas escutas para investigar quem foram seus algozes e nem serão feitos testes de balística para definir qual o calibre da bala que as atravessou. Em alguns casos, o machismo bastará como pagamento para inocentar os suspeitos.
É absolutamente fundamental que o assassino de Milena Gottardi seja identificado, devidamente processado e que cumpra sua sentença. Mas é absolutamente fundamental, igualmente, que TODOS os assassinos sejam devidamente identificados, processados e cumpram suas sentenças, não importa quem sejam as vítimas.
As autoridades policiais e judiciais não podem ser movidas ao choro das vítimas, ao ponto de que defunto que chora alto obtém justiça e defunto que não chora acaba esquecido debaixo da terra.
Meu amigo Sérgio Neves diria que é assim que caminha a humanidade. Mas nesse caminho meu caro Sérgio, será só uma caminhada, sem humanidade.