Compartilho com meu amigo e editor Basílio a angústia dessas eleições e o desejo – e esperança – de que ela rapidamente passe e voltemos a tempos normais, quando o maior ato de agressividade em um processo eleitoral era jogar bolinhas de papel na lustrosa careca de José Serra.
Outro dia nesse espaço fiz menção à valorosa lição que aprendi em Cachoeiro de Itapemirim com o velho Ferração, de que na política temos adversários e não inimigos. A lição de nosso deputado deveria se espalhar para o país onde, nos últimos dias, andam querendo – e quando não realizando – fuzilar os adversários, tornados inimigos públicos em nome de algum deus estranho defendido por algum padre de festa junina.
Mas enquanto compartilho com o amigo Basílio a angústia, certamente discordo quanto à causa da angústia.
Em primeiro lugar, é preciso dizer, quanto a “ministro do STF ter o controle das eleições”, ou nosso Supremo ser um tribunal indicado por políticos (exatamente como nos EUA), que há aí a disseminação de algumas interpretações bem destoantes que precisam ser esclarecidas.
Por ocasião da Constituição dos EUA, antiga e bem enxuta, diferente da nossa, já se entendia que esse conjunto de regras tão evocado nos últimos anos para justificar qualquer coisa jamais daria conta de toda a complexidade da vida. Mesmo a nossa Constituição, longa, cansativa, detalhada e recente, não é capaz de dar conta de toda a complexidade da vida.
Os alemães também perceberam isso após a Segunda Guerra Mundial, quando a letra fria da lei foi ocasião para que Hitler, constitucionalmente, ascendesse à chefia do país e o levasse ao desastre, à fragmentação política, à morte. Daí surge um movimento chamado Novo Constitucionalismo, que algum professor de Direito da área explicará melhor que eu, mas que, muito em resumo, entende que a Constituição dá as regras gerais e os juízes da Suprema Corte, dentro de certos parâmetros previamente estabelecidos, decidem a partir dessas regras gerais.
Sob esse olhar, nada há de errado com os nossos juízes do Supremo. Além disso, a escolha de juízes por políticos faz parte do sistema de pesos e contrapesos que impede o fortalecimento excessivo de algum dos três poderes sobre outro. Tanto é que o atual ocupante da cadeira presidencial indicou dois ministros que já demonstraram sua lealdade canina com engenharias jurídicas mais criativas que a contabilidade da Dilma Roussef.
O problema é que certas pessoas ultimamente estão mais predispostas á sua interpretação perversa da realidade que querem que seja real do que aceitar os fatos. Ora, o STF não é como o Ministério Público que sai por aí procurando coisas (o procurador geral atual, por exemplo, em caso disfuncional, nada procura e logo nada acha).
O STF é provocado pela Polícia Federal, é provocado pelos partidos, e creio que é preciso avaliar o quanto o atual governo, por incompetência, inépcia e mau-caratismo eventual não, simplesmente, desrespeita a Constituição com frequência (embora diga que não) e com isso demande a constante atuação do Tribunal Constitucional.
Ora, boa parte das decisões criticadas pelo atual presidente são bem óbvias e nem necessitam de uma sofisticada interpretação neo constitucional, como, por exemplo, o respeito às decisões dos governadores e a abertura da CPI, decisões relacionadas à pandemia da Covid.
Grosso modo, as pessoas aplaudem quando os Juízes decidem segundo suas opiniões e os defenestram quando decidem diferente do que gostariam que fosse verdade. Observemos a reação de alguns à declaração de voto do ex-ministro Joaquim Barbosa, antes herói do antipetismo e agora uma opinião que nada mais vale para os antipetistas. Ou mesmo não reconhecer quando o próprio tribunal dá decisões a favor do atual presidente que tanto o critica, como por exemplo, anulando as provas obtidas pelo Ministério Público quanto às rachadinhas do filho do presidente.
Que me conste, é bem complicado racionalmente argumentar que o Juiz Sérgio Moro não foi parcial nos processos contra Luiz Inácio Lula da Silva, principalmente quando o próprio assume assento como ministro do maior beneficiado pela condenação apressada do ex-presidente.
Não se discute aqui a culpa ou não do ex-presidente, mas a parcialidade ou não do Juiz. “Ah, mas os tribunais superiores confirmaram as sentenças e até aumentaram as penas!” Ora, cabe analisar o que esses tribunais julgaram, já que no complexo mundo do Direito, os tribunais recursivos não são recursivos a qualquer coisa.
E, mesmo que tenham decidido a respeito de pedidos similares ao levado à última instância, a palavra final é do Supremo Tribunal Federal. E isso é constitucional, se é que isso importa para os que já decidiram pela culpa independente do julgamento.
Creio ser óbvio a alguém mentalmente saudável o comportamento afrontoso, desrespeitoso e sem decoro do atual presidente em relação às decisões da corte. Enquanto Lula, embora questionando as condenações, entregou-se e cumpriu a pena referente à processos que foram anulados posteriormente por conta da parcialidade do Juiz que lhe julgou, o atual presidente insiste em agressões constantes, ameaças, incitação ao não cumprimento de decisões judiciais, colocando em dúvida o próprio processo eleitoral e fazendo ameaças à democracia. Ora, como o TSE não se posicionaria diante de tal falta de compostura?
Por fim, ressalto aqui, tenho minhas posições e são claras, mas não se trata de discutir a preferência por A ou por B, que é livre na democracia (tão livre que alguns clamam democraticamente pelo fim da democracia). E nem de desqualificar quem escolhe A ou B. Trata-se de reconhecer que as decisões judiciais não serão sempre as que queremos; que os resultados das pesquisas não serão sempre o que queremos; que a ciência não diz o que queremos que ela diga; que a pessoa com quem desejamos nos casar nem sempre vai nos querer; e que a pessoa com quem nos casamos pode não mais querer continuar a nos suportar; que o que pensamos ser o correto pode não ser o que a maioria pensa ser correto; que o que hoje acreditamos, amanhã podemos ignorar; e que a vida se impõe como fluxo constante de acontecimentos e mudanças e tentar conter essa diversificação, essa complexificação que progressivamente se efetiva no avanço desse fluxo é uma grande perda de tempo existencial.
Tudo passará, caro Basílio, e nada mais será como antes amanhã. Mas, infelizmente, uma coisa não passará. A profunda decepção que me toma quanto aos que, efusivamente, gritam como nazistas “Deus, pátria e família”.
Não obstante não veja a hora de ser feliz de novo e apenas sorrir, saibam que meus olhos não confessarão ver uma suástica tatuada em cada um que, intencional ou não, evoca o extermínio, o preconceito, a homofobia, o racismo, o autoritarismo, o patriarcalismo, que evocam, enfim, um modo de vida fascista.
Porque, afinal de contas, sempre é, de alguma forma, intencional.