A cultura masculina é muito movia pela competição. Desde novos já nos ensinam que só os “bem-sucedidos” são “homens de verdade”. Isso nunca colou muito comigo, em grande parte porque tive o privilégio de ter a mãe que tenho. Mas meu pai era bem influenciado por isso. E sofria bastante porque, no fim das contas, ele não era “bem-sucedido”. Para explicar para si mesmo (e para os outros) o fato de que se via como “fracassado” mas não deixava de ser homem, ora se colocava como vítima de uma conspiração internacional; ora inventava umas fantasias super malucas, um tipo de mundo alternativo onde ele era “bem sucedido”; ora culpava algum parente próximo ou distante (quase sempre a culpa é do cunhado); ora culpava alguma entidade etérea, esotérica, lotérica; ora – e no fim da vida a maior parte das horas – bebia.
Mas havia um lugar onde meu pai era feliz desempenhando uma função bem simples, sem muito destaque ou visibilidade, sem grandes perspectivas de mudar o mundo ou ficar rico, ou dar a tal “virada”, comprar carro novo, e enfim, esses símbolos de “sucesso”.
Papai era muito amigo do Alcery e da Vera, que por essas linhas genealógicas gigantescas são meus parentes. Algum ancestral do qual obviamente eu não tenho a menor ideia sequer do nome. E eles cuidam lá do Itaoca Pousada Camping, logo no comecinho da praia de Itaoca, em Itapemirim. Papai ia para lá no verão. Trabalhava na recepção, dava apoio em tudo, conversava com os hóspedes e fazia aquilo que sabia fazer melhor: amigos.
Eu chegava lá e quase sempre estava ele em uma cadeira e o Alcery na outra. A mesa no meio. E eu via meu pai feliz ali.
Certo dia fui visitá-lo, já no fim da vida. Era janeiro. Ele já estava bem doente, caminhando para os últimos momentos. Me disse que precisava ir para o Camping, que Vera e Alcery estavam sozinhos. Precisavam dele. O camping era o lugar que ele se sentia útil e importante. E era o lugar onde ele realmente era útil e importante. Pedi para aguentar as pontas, que janeiro seria difícil levar ele para “trabalhar”. Mas que, se ele segurasse as pontas um tempinho, eu ia dar um jeito. E ele segurou. Com uma operação de guerra envolvendo irmãos, primos, tios e tias, conseguimos nos encontrar no Camping em Itaoca. Mais para o fim da tarde daquele dia agradável, papai disse para as irmãs que já tinha visto o mar, tinha visto todo mundo que queria e que estava na hora de ir embora. E foi mesmo. Uns quinze dias depois ele dormiu e não acordou.
Uma cadeira estava vazia, mas o Alcery estava lá, na outra cadeira. Sempre conversamos muito. Falávamos de livros. Ele compartilhava muita coisa e havia me prometido umas aulas de tênis, esporte que dominava bem. Certo dia ele passou mal e precisou ser internado para uma cirurgia. Fui lá no sábado antes da operação. Fiquei a tarde toda. Ele me contou de como tinha saído da empresa onde era executivo para fazer um baita hotel em Itaoca. No meio do caminho do sonho, tinha o Collor, que confiscou o dinheiro de todo mundo nas suas trapalhadas com a economia nacional. O dinheiro para construir o hotel ficou preso, e meu amigo passou maus bocados. Mas no fim das contas realizou o sonho e fez a bela pousada e camping que estão lá até hoje. Alcery não terminou a semana. Se foi durante a cirurgia.
Fiquei uns anos sem ir no Camping por medo de chegar lá e ver as duas cadeiras vazias. Tomei coragem e fui domingo passado. As cadeiras estavam lá, vazias. Mas a vida é assim, né. É preciso seguir. E agora eu até comprei uma barraca para acampar no camping, nessas novas aventuras que os quarenta anos demandam. E já estou com os olhos na biblioteca do Alcery, pensando em sentar lá e catalogar aqueles livros para as pessoas poderem usar.
Talvez o prezado leitor esteja até com lágrimas escorrendo pelos olhos aguardando a grande lição que sintetizará as duas bonitas histórias que foram contadas. Então vamos a ela, sem mais delongas.
Viver é bom. Mas viver do lado do mar é muito bom.